terça-feira, 16 de agosto de 2011

SINDICATO DOS VADIOS (1ª parte)

'em um ponto qualquer de um futuro imaginário, provavelmente muito depois de 2050'



SINDICATO DOS VADIOS

Branca e nua, repousando sobre um universo espelhado, cingida apenas com uma legenda no centro da primeira folha, a fina resma de papel parecia um elemento alienígena, uma ampla janela fosca filtrava a claridade do dia e a mesa, frugal em objetos, irradiava farta luminosidade vítrea, a superfície de vidro, além dos tons monocromáticos e acinzentados do ambiente, refletia os parcos itens dispostos. De uma base triangular ramificava-se uma tela de cristal emoldurada por material plástico e branco. Entre a janela e a mesa, se fazendo solidária com seu dono, uma cadeira giratória tensa, tão tensa quanto quem estava sentado nela, era como se ambos estivessem aguardando o próximo movimento. Olhos fitos, além da luz, o longo tempo era a única coisa que fluía naquela sala. Dedos entrelaçados pressionando a boca se desfazem e a tela emoldurada sente a conseqüência da ação fazendo sumir seu conteúdo com o efeito de um toque. A atenção é dirigida apenas ao elemento alienígena que invadia a mesa.

Quando Adam leu pela primeira vez a legenda pensou que se tratava de mais um desses libelos contra os dirigentes. No subtexto até poderia ser. Mas lendo o manifesto na integra logo entendeu que se tratava de algo diferente, e até mesmos sórdido. Era o que ninguém esperava ou queria que fosse: um elogio aberto, descarado, total e intransigentemente sem pudor à preguiça e à vadiagem. Uma verdadeira apologia a favor de tudo o que qualquer sociedade minimamente sadia considera inadmissível.

. A função de Adam era a de avaliar e investigar os ânimos em casos de rebelião aberta como aquela, mas não teria muito com o que se preocupar neste caso. Imaginava que quando fosse apresentar o relatório a seus superiores a conclusão unânime seria a de que essa nova espécie de movimento não representa perigo algum, e ele não destoaria do que fosse dito. Ainda assim concebeu o risco maior que existe em uma idéia pulverizada e aceita do que qualquer atividade ou inatividade proveniente de seus divulgadores; sua rede de informações o mantinha atento a ponto de considerar que aquelas pessoas mereciam ser vigiadas de perto. As idéias contidas no texto tinham certo apelo. A grande palhaçada da reivindicação é que quem clamava dessa forma já estava fora de ação e sem exercer nenhum tipo de atividade produtiva por um tempo razoável. Por que eles estavam se sentindo obrigados a trabalhar se não havia nenhuma pressão oficial ou extra-oficial que os compelissem a sair de sua indolência?

O texto começa taxativo:

“Nós não queremos trabalhar e repudiamos qualquer sistema que nos obrigue a isso”

“Exigimos receber das organizações institucionais e corporativas vigentes recursos adequados a nossa subsistência, aprimoramento cultural, e necessidades de deslocamento e atividades de lazer e ócio necessárias ao conforto humano”.

Os recursos governamentais a disposição dos homens e mulheres deslocados de sua atividade por excedente de mão de obra não eram suficientes?

“Caso algum de nossos membros deseje trabalho e procure recolocação que haja amplitude de opções tanto de qualificação quanto de reabsorção de atividades”.

Ora, afinal não eram tão vagabundos assim.

“Que ninguém seja forçado a exercer nenhuma atividade não condizente com sua vocação talento, vontade ou disposição via pressão econômica social religiosa ideológica cultural ou de qualquer outro teor”.

“O direito ao ócio total é tão sagrado quanto o direito ao trabalho ou ao lazer, portanto não deve ser demonizado, diminuído ou considerado nocivo. Que as pessoas que o exercem ostensivamente não sejam alvo de descriminação preconceito ou represálias de qualquer natureza.”

Vadios de fato. O manifesto seguia com uma longa digressão histórica a respeito do mundo do trabalho, de como suas mais diversas formas apropriação foram desenvolvidos; falavam dos vários conceitos a seu respeito, seus processos de sacralisação e dessacralização, da sua necessidade enquanto instrumento de aprimoramento humano em contraste com seu assumido caráter de opressão e mero instrumento destinado ao acúmulo de lucro. Contudo admitia uma organização de trabalho administrada de forma orgânica em substituição ao modo de solidariedade mecânica vigente; e seguia em frente tentando demonstrar que o trabalho verdadeiro e produtivo é aquele realizado quando efetivamente se quer realizá-lo e não quando é exercido em nome de organismos que não dizem respeito aos valores e princípios das pessoas que são convocadas para realizá-lo, o ócio completo é mais desejável do que qualquer trabalho com o qual não se tenha a menor afinidade ou que seja imposto por pressão econômica. Era o repúdio total ao que era chamado de: “milenar alienação do trabalho”, porém aceitava o trabalho como meio legitimo de subsistência. Algumas coisas do manifesto não eram novas.

Adam se considerava um sujeito de mente aberta, até de mais para um burocrata diligente, mas mesmo ele não conseguia ver seriedade naquelas palavras. Estava acostumado a ouvir que os componentes de organismos públicos e governamentais do estado eram os verdadeiros vadios que ganhavam sem fazer nada. Sentia-se constrangido ao ouvir isso. Saber que existiam pessoas que propunham dedicação à vadiagem sem o maior pudor lhe causava repulsa.

Sai do escritório imaginando que aquele bando não resistiria ao próximo verão. O resultado de tudo aquilo seria apenas uma divertida reunião de comissários de segurança em que aquele material e pessoas exóticas seriam alvos de riso. Com certo constrangimento lembrou que ainda era pago para isso.

Com passo largo seguiu à sala de reunião onde o esperavam colegas de trabalho. Nem todos estavam ali. Como sempre Adam estava entre os primeiros a chegar. Os mais pontuais, chegavam na hora exata com a precisão de um cão treinado, eram chefes de seção, sempre sisudos no inicio e depois distribuindo cumprimentos mais formais do que cordiais. Cinco no máximo sete minutos, eram necessários para costumeiros mexericos típicos de qualquer espaço de trabalho. Uma colega falava a um homem e uma mulher das garatujas que seu filhinho trazia pra casa na volta das férias de verão, em outra roda, menos familiar, caras com sorriso de quem se achavam espertos discorriam sobre a avaliação estética a respeito das novas secretárias. Adam sempre ouvia tudo dedicando e dividindo atenção dissimulada ora a um grupinho ora a outro, e até rindo, quando necessário, de alguma amenidade. Riso, ele já estava acostumado com os vários tipos de riso que existiam naquelas reuniões, inclusive com os dirigidos a ele, principalmente quando o viam carregando suas arcaicas folhas de papel como se fosse uma relíquia. Ninguém entendia porque ainda usava aquilo; tinha a disposição toda a informação que quisesse nas várias telas que podia encontrar: na sua mesa sensível ao toque no monitor que saia dela, no displey vertical da gigantesca mesa da sala de reuniões, tablets, ipods e books ou qualquer coisa com a capacidade de fazer uma tela grande ou pequena brilhar na sua frente. Não chegava a ser um incomodo para os outros, limitava o uso do papel apenas a seu escritório. Os eventuais inconvenientes deste hábito incidiam somente sobre ele. Arquivar o que selecionava como importante, livrar-se do que achava excessivo, dar destino ao material descartado eram coisas que se comprometeu a fazer sem onerar o ritmo de trabalho da secção. Mesmo que considerassem isso um insidioso contratempo, Adam tinha um bom ritmo de trabalho, por isso seus superiores decidiram manter e até aceitar o custo a mais que esse privilégio requeria. Três rostos circunspetos irrompem na sala e tomam seus assentos; cumprimentos. O comissário, dois chefes de seção, sete inspetores. Dedos tocam a superfície de vidro da tabula retangular e o que era apenas a parte superior de uma mesa se transforma em uma tela horizontal. Códigos de acesso são digitados pelo comissário e surge na frente de cada integrante da reunião um quadriculado branco com um texto dentro. Relatório por relatório é apresentado e discutido. Amenidades administrativas. Finalmente chegam ao sindicado dos vadios; surgem às piadinhas e risos esperados, o comissário, sarcástico, se dirige para Adam. “Por favor, inspetor nos presenteie mais detalhes a respeito desta perola que temos a nossa frente”. “O núcleo ou célula principal desta organização”, fala incisivamente ‘organização’ , dedos indicador e médio colocam aspas na palavra, “ é composto por 5 elementos, todos inativos em suas respectivas profissões, por motivos de excesso em seus postos de trabalho com exceção apenas de dois dos membros. Não existe uma liderança, eles se organizam através de uma linha hierárquica horizontal, mas temos um organizador. Se observarem no relatório”, fichas com fotos de rostos sisudos na tabula, “O homem apontado como principal organizador é engenheiro e cientista com pós graduação em edificação extra-gravitacional. Sua ocupação principal por nove anos e meio foi como pesquisador em marte. Faziam parte de sua equipe geólogos, químicos e físicos, testavam material e ligas metálicas retiradas de solo marciano que apresentavam melhores características para edificação de estruturas em Marte” dedilhando enquanto falava fotos de pessoas cercadas por uma imensidão vermelha de céu e terra apareciam nos monitores, “Sem motivo ou explicação claros abandona suas atividades e pede retorno imediato a terra, trabalha por 6 meses como consultor privado de uma multinacional e depois de findo o contrato não quis renová-lo, mesmo a empresa lhe oferecendo uma acréscimo substancial para contratá-lo de forma efetiva; o segundo homem ex capitão de uma força especial muito atuante no oriente médio e norte da áfrica; é oficial condecorado, destaque em operação de combate e infiltração de tropas em ambientes urbanos, é especialista em demolição e explosivos. Boa parte de seus arquivos são confidenciais por isso só tive acesso a um terço das informações necessárias. O máximo que pude obter de significativo foi a menção a respeito de um indiciamento feito em regime de sigilo e depois arquivado”; some a foto de um homem fardado, surge a imagem de um operário de macacão. Trabalhador deslocado por excesso de capital humano produtivo, é soldador a disposição de uma siderúrgica cooperativa, está inativo de suas operações a mais de um ano; o próximo, é técnico em operações de siderurgia, atua em sindicatos da categoria e pelas mesmas razões que permanece inativo, se dedicando apenas à atuações políticas no sindicato. O quinto elemento é a filha do técnico e sindicalista, acadêmica estudante de literatura inglesa, integrou um movimento de resistência a implantação de multinacionais e transnacionais particulares no distrito em que seu pai trabalhava, alfabetiza filhos de funcionários das cooperativas da região dando aulas de reforço à alunos defasados. É um dos membros mais atuantes do grupo e organiza em sua universidade grupos de discussão que envolvem as demandas dos sindicatos operários e de oficio.

O comissário retém os arquivos do comandante de forças especiais e do engenheiro de edificações.

“Estes dois têm qualificações boas de mais; esperava um grupo de lesados mentalmente, quem integra um grupo intitulado como ‘sindicato dos vadios’ não poderia ter um histórico tão sério; avaliando melhor será que não existe um algo a mais que não foi detectado nesta organização?”

Adam cruza os braços, tornozelo esquerdo sobre joelho direito, costas pressionando o espaldar da cadeira.

“Coloquei gente infiltrada entre amigos e conhecidos de cada um, não fui atrás apenas de rumores; estas pessoas não estão fazendo nada que mereça nossa preocupação, avaliando gastos, movimentação financeira, grupos infiltrados dentro de reuniões, gravações, escutas...nada leva a crer que não sejam apenas um grupo inócuo de pessoas insatisfeitas com suas vidas e com sua relação com o mundo”

Atenções se voltam a um dos inspetores: “Sabemos que já existiram rebeliões, revoluções, golpes de estado e outras situações de crise por bem menos do que ‘insatisfação com o mundo’”.

“Não há nada contra eles, não transgrediram nenhuma lei” insiste Adam.

A mulher do filhinho das suas garatujas ascende: “A despreocupação de Adam é justificada, gastamos recursos, tempo e pessoal de mais com isso”.

“Só dedicamos tempo a isso por insistência da regional de inteligência do setor setentrional da América do Sul, temos uma rebelião séria e violenta por lá; um dos militantes do sindicato da cooperativa de artesãos de lá mantém ligações com grupos armados e mandou e recebeu mensagens eletrônicas codificadas para o nosso Capitão. Acho que isso é novidade para vocês” o comissário observa a expressão geral de surpresa. “Não fique constrangido Adam os contatos ocorreram antes de eu ordenar sua investigação”

Adam ficava irritado quando superiores, mesmos com eles tendo essa prerrogativa, sonegavam informações, mas nunca deixava transparecer seu transtorno.

“O caso dos vadios não se encerra aqui quero que você mesmo Adam se infiltre no sindicato e tire tudo o que puder tirar do Capitão Souza” O inspetor esboça querer falar, é impedido “Se aproxime desse engenheiro de estruturas ganhe a confiança dele faça o homem se abrir, descubra detalhadamente porque abandonou Marte tão atabalhoadamente; Se apresente como funcionário do setor de segurança investigação e inteligência abertamente”; não se preocupe em ocultar nada, irão tentar cooptar você, demonstre-se interessado; seus informantes vão saber como fazer e organizar os primeiros contatos. Eles sabem que estão sendo investigados. Você terá que observar detalhes, além do que eles dizem. Os convença que a organização nos parece inócua e que lhe mandamos até eles por mera formalidade. Se for convidado a participar de alguma atividade do grupo aceite e relate tudo o que ouvir. Se não fosse por esses dois eu arquivaria o caso, mas o comando do setor de segurança, por alguma razão acha essa proximidade entre um engenheiro de estruturas e um capitão de operações de combate especialista em explosivos e demolição, e ainda com formação e atuação política intensa, muito inusitada. Perguntas inspetor Adam?”

“O senhor comissário quer que eu finja interesse nos princípios de uma organização exótica sem que eu acredite em nada do que dizem, Desculpe, mas não sou agente de campo, e com toda a franqueza, eu não sou tão bom ator.”

“Não precisa atuar senhor Adam, basta demonstrar curiosidade”.

“Um simples interrogatório não resolveria a questão?”

“Um simples interrogatório seria superficial, e como o senhor mesmo disse eles não desrespeitaram lei alguma e se não existe crime não existe razão para interrogatório”

“Mesmo essa investigação já seria rejeitada na corregedoria.”

“Por causa do nosso capitão é de lá que veio a recomendação para o que todos os efeitos é uma simples averiguação.”

“Mas não seria muito explicito eu me apresentar como inspetor do serviço de inteligência?”

“Se forem inócuos como disse tentarão integrá-lo e lhe deixarão saber tudo a respeito da organização; se a organização estiver tramando algo irá deixá-lo desinformado sobre qualquer detalhe que achar suspeito, adiara seus planos e o dispensara aos poucos; Nesse caso você sai de cena e então serão tomadas outras medidas. O que importa neste momento é que sabemos que o grupo irá recebê-lo e vamos tirar proveito disso.”

Um dos gaiatos que anteriormente fazia avaliações sobre as secretárias novas graceja com Adam

“Logo um cara viciado em trabalho como você é indicado como membro integrante do ‘sindicato dos vadios’; não fica chateado parceiro encare isso como período de férias” ninguém ri.

“Tem dois dias para travar contato, acione seus informantes agende uma visita, e tenha participação intensa em todas as atividades do sindicato; não tenha o menor pudor em se aproximar o máximo possível do nosso capitão e do engenheiro de estruturas.”

De volta a sua sala Adam descarta as folhas num antigo triturador como se na destruição daqueles papéis existisse alguma desforra para o incomodo de ser obrigado a misturar-se àquela gente.